O Estado Novo, o regime que governou Portugal entre 1933 e 1974, sob a liderança de António de Oliveira Salazar e, mais tarde, Marcelo Caetano, é um tema de grande relevância histórica e, frequentemente, objeto de debate entre estudiosos. Uma das questões mais controversas e discutidas é se o Estado Novo pode ou não ser classificado como fascista. Embora o regime tenha adotado algumas características semelhantes ao fascismo, outros argumentam que era um sistema autoritário conservador com particularidades que o distinguem de regimes explicitamente fascistas, como o de Mussolini na Itália ou o de Hitler na Alemanha.
Este artigo visa explorar as diferentes perspetivas sobre o Estado Novo e o seu posicionamento ideológico, examinando as suas características, semelhanças e diferenças em relação ao fascismo. Pretende-se oferecer uma análise profunda e fundamentada que ajude a compreender melhor este período marcante da história de Portugal.
1. O Contexto Histórico do Estado Novo
O Estado Novo nasceu em 1933, no seguimento da ditadura militar instaurada em 1926, após o golpe que pôs fim à Primeira República Portuguesa (1910-1926). A instabilidade política, social e económica durante a Primeira República, caracterizada por uma sucessão de governos de curta duração, crises financeiras e agitação social, levou à insatisfação generalizada e criou um ambiente propício para a ascensão de regimes autoritários.
Salazar, inicialmente ministro das Finanças, ganhou notoriedade ao estabilizar as finanças públicas, tornando-se progressivamente a figura central do regime. Com a Constituição de 1933, foi formalizado o Estado Novo, uma ditadura com base no corporativismo, inspirada em modelos conservadores e autoritários, que visava restabelecer a ordem e a estabilidade em Portugal.
2. As Características do Estado Novo
O Estado Novo apresentou uma série de características que o definiram ao longo das suas mais de quatro décadas de existência. Estas características incluem:
2.1. Autoritarismo
O Estado Novo era um regime fortemente autoritário, no qual o poder estava concentrado na figura de Salazar. Não havia liberdade política, e a oposição era silenciada de forma sistemática. Os partidos políticos foram abolidos e substituídos por uma organização corporativista, controlada pelo Estado.
A PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado), mais tarde renomeada para DGS (Direção-Geral de Segurança), desempenhava um papel fundamental na repressão de opositores e na manutenção do regime. A PIDE/DGS utilizava métodos de censura, vigilância, prisões arbitrárias e tortura para garantir a estabilidade do governo e suprimir qualquer forma de dissidência.
2.2. Censura
A censura era uma prática central no Estado Novo. Todos os meios de comunicação social, como jornais, rádio e televisão, estavam sob vigilância rigorosa, e qualquer conteúdo que fosse considerado subversivo ou contrário aos interesses do regime era censurado ou proibido. A liberdade de imprensa era inexistente, e a narrativa oficial era cuidadosamente controlada pelo governo.
2.3. Nacionalismo
O Estado Novo promovia uma visão nacionalista exacerbada, centrada na exaltação de Portugal como uma nação singular, herdeira de um passado glorioso e com um papel a desempenhar na civilização ocidental. Esta visão incluía a defesa do império colonial, que era visto como uma parte integrante da identidade nacional. A manutenção das colónias africanas (Angola, Moçambique, Guiné, entre outras) era um dos pilares da política externa do regime, apesar da crescente pressão internacional pela descolonização.
2.4. Corporativismo
O Estado Novo adotou um modelo corporativista, que pretendia ser uma “terceira via” entre o capitalismo liberal e o socialismo. Este modelo visava organizar a sociedade em corporações, ou seja, entidades que representavam diferentes setores económicos (patrões e trabalhadores), sob a supervisão do Estado. A ideia era evitar conflitos de classe através de uma harmonização imposta de cima para baixo, mas, na prática, o sistema favorecia os interesses dos patrões e das elites, e os trabalhadores tinham pouca margem para reivindicar direitos.
2.5. Conservadorismo
O regime de Salazar era profundamente conservador e estava estreitamente alinhado com a Igreja Católica, que tinha um papel privilegiado na sociedade portuguesa. Os valores tradicionais, como a família, a moral cristã e o papel submisso da mulher, eram promovidos ativamente. O Concordato de 1940 entre o Vaticano e Portugal oficializou a Igreja Católica como uma instituição central na vida política e social do país.
3. O Estado Novo e o Fascismo: Semelhanças
Muitas das características do Estado Novo são semelhantes às dos regimes fascistas que surgiram na Europa no mesmo período, nomeadamente na Itália de Mussolini e na Alemanha de Hitler. As semelhanças incluem:
3.1. Autoritarismo e Repressão
Tal como os regimes fascistas, o Estado Novo era uma ditadura onde a oposição política era proibida e a repressão era um mecanismo central de controlo. A PIDE desempenhava um papel semelhante às polícias políticas fascistas, como a Gestapo na Alemanha Nazi ou a OVRA em Itália, perseguindo e silenciando dissidentes.
3.2. Nacionalismo e Exaltação da Pátria
O nacionalismo exagerado do Estado Novo, com a sua retórica de defesa da pátria e do império, também ecoa os discursos fascistas de supremacia nacional e do dever de expandir ou manter o território nacional. A exaltação do império colonial português lembra as ambições expansionistas dos regimes fascistas, embora com objetivos diferentes.
3.3. Anticomunismo
O Estado Novo, como os regimes fascistas, era ferozmente anticomunista. A oposição ao comunismo era um dos pontos centrais da ideologia do regime, e qualquer simpatia por movimentos de esquerda era severamente reprimida. O comunismo era visto como uma ameaça ao equilíbrio social e ao conservadorismo moral e religioso promovido por Salazar.
3.4. Controle da Sociedade e da Economia
O modelo corporativista do Estado Novo pretendia regular a sociedade e a economia de maneira controlada, semelhante ao modo como os regimes fascistas intervinham fortemente na economia para garantir a estabilidade e a harmonia social. Em ambos os casos, a ideia de uma sociedade organizada e harmoniosa era uma prioridade, embora o fascismo promovesse um maior dinamismo social do que o regime conservador de Salazar.
4. O Estado Novo e o Fascismo: Diferenças
Apesar das semelhanças, há também diferenças importantes entre o Estado Novo e os regimes fascistas, o que leva muitos historiadores a argumentarem que o Estado Novo não era, de facto, fascista no sentido clássico da palavra.
4.1. Ausência de Mobilização de Massas
Um dos principais traços do fascismo era a mobilização de massas. Tanto Mussolini como Hitler criaram movimentos de massas fortemente organizados, com partidos únicos que promoviam manifestações públicas, paradas militares e cultos de personalidade em torno dos seus líderes. O Estado Novo, pelo contrário, era um regime muito mais conservador nesse aspeto. Salazar desconfiava das massas e preferia um governo tecnocrático e distante, evitando grandes mobilizações populares e procurando manter a ordem de forma mais discreta.
4.2. Relutância em Aderir ao Expansionismo Militar
Embora o Estado Novo fosse militarista em termos de controle interno e defesa do império colonial, não tinha as mesmas ambições expansionistas agressivas dos regimes fascistas. Salazar focou-se em manter a neutralidade de Portugal durante a Segunda Guerra Mundial e resistiu a envolver o país em conflitos externos, preferindo preservar o império colonial em vez de embarcar em aventuras expansionistas na Europa.
4.3. Conservadorismo Religioso
O Estado Novo era profundamente conservador e católico, o que o distinguia dos regimes fascistas, que, embora muitas vezes utilizassem a religião como ferramenta de manipulação, tinham um caráter mais secular e, por vezes, até anti-religioso. O fascismo italiano, por exemplo, tinha tensões com a Igreja Católica, apesar dos acordos que Mussolini fez com o Vaticano. Já o Estado Novo promovia a Igreja como uma aliada essencial na manutenção da ordem moral e social.
5. O Estado Novo era Fascista?
A questão de se o Estado Novo era ou não fascista é complexa e não tem uma resposta simples. Por um lado, o regime de Salazar partilhava muitas características com os regimes fascistas europeus, como o autoritarismo, o nacionalismo, o corporativismo e o anticomunismo. Por outro lado, as diferenças importantes, como a ausência de mobilização de massas, a relutância em participar no expansionismo militar e o forte conservadorismo católico, distinguem o Estado Novo dos regimes fascistas clássicos.
Portanto, muitos historiadores consideram que o Estado Novo pode ser classificado como um regime autoritário conservador, influenciado pelo fascismo, mas não totalmente alinhado com ele. Em vez de um fascismo revolucionário e de massas, o Estado Novo era uma ditadura burocrática, tecnocrática e conservadora, focada na estabilidade interna e na preservação dos valores tradicionais.
O debate sobre a natureza do Estado Novo continua a ser um tema de grande interesse, e a resposta depende, em grande parte, da definição de fascismo que adotamos e da forma como interpretamos as particularidades deste regime único na história de Portugal.